Enquanto as taxas de desmatamento tradicional estão em queda, os focos de incêndio explodem na Amazônia, Cerrado e Pantanal. 60% do território brasileiro está coberto por fuligem e fumaça, que já atinge outros países da América do Sul, ecreve João Gonçalves, Diretor Sênior da Mighty Earth para o Brasil.
Uma enorme nuvem de fumaça cobre quase todo o Brasil. As cores do país megabiodiverso que, entre outros biomas, abriga a maior floresta tropical do mundo deram lugar ao cinza, à fumaça e à fuligem. Como morador de São Paulo, a maior cidade brasileira, não lembro qual foi a última vez que vi o céu. O cenário é o mesmo em cerca de 60% do território brasileiro.
A situação que levou São Paulo e sua região metropolitana, de acordo com o site IQAir, a registrar, no começo dessa semana, a pior qualidade de ar entre as metrópoles do mundo é uma junção dos impactos das mudanças climáticas com atos criminosos que queimam a floresta para a ocupação ilegal de terras. Ao mesmo tempo que mais da metade do Brasil sofre os impactos diretos da crise climática, enfrentando a pior seca dos últimos 44 anos, o país está prestes a ultrapassar a marca de 160 mil focos de incêndio em 2024 – número 104% maior em comparação ao mesmo período de 2023, no qual foram registrados quase 78 mil focos.
Segundo o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais), mais de 1.300 municípios no Brasil enfrentam condições de seca severa. Já em situação de seca extrema, são 1.995 cidades brasileiras. É a primeira vez que um déficit de chuvas é observado por um tempo tão prolongado em uma área tão extensa do Brasil, o que impulsiona o alastramento das queimadas. O fogo que se alastra por praticamente todos os ecossistemas brasileiros, sendo a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal os mais atingidos em 90% dos casos são causadas pela ação humana.
De acordo com o MapBiomas, só em agosto foram queimados mais de 5,7 milhões de hectares, um crescimento de 149% em relação a agosto de 2023. Se considerado o total acumulado desde janeiro, foram 11,39 milhões de hectares – 6 milhões de hectares a mais, ou um crescimento de 116%, em relação ao ano passado. Mato Grosso, Pará, Amazonas e Tocantins, todos estados da Amazônia Legal, lideram os focos de queimadas. Em Mato Grosso, por exemplo, o aumento chega a 646%, passando de 1.400, no ano passado, para quase 10.700, neste ano.
A explosão dos focos de incêndio, bem como coincidências nas áreas queimadas, levanta suspeitas de atos criminosos e orquestrados. No estado de São Paulo, por exemplo, segundo informações do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), entre os dias 22 e 24 de agosto, foram registrados 2,6 mil focos de calor, sendo que 81% estavam concentrados em áreas de uso agropecuário. A análise também mostra o aparecimento de colunas de fumaça no estado no intervalo de 90 minutos, levantando ainda mais suspeitas sobre atos criminosos.
Para o Ministério do Meio Ambiente e Mudanças do Clima, e outros especialistas do tema, a explosão do fogo no Brasil pode ser uma nova estratégia para a derrubada da floresta e a posterior ocupação ilegal. O desmatamento tradicional, que desmata grandes áreas de uma vez só, estaria dando espaço a uma degradação florestal mais gradual, vulnerabilizando a floresta até a sua morte total. Esse processo mais lento passa mais despercebido pelos satélites que monitoram o corte da floresta.
Prova disso, é que segundo o INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Especiais), entre agosto de 2023 e julho deste ano, a degradação da Amazônia por queimadas foi seis vezes maior que o desmatamento. A degradação cresceu 44,7%, enquanto o desmatamento caiu 45,7%, na comparação com os 12 meses anteriores. Segundo o presidente do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), Rodrigo Agostinho, em entrevista à Agência Pública, a associação entre extração de madeira, seguida de fogo e posteriormente o plantio de pastagem no interior da floresta degradada, parece ser uma nova estratégia de ocupação do território.
Ao contrário do desmatamento tradicional, a autoria de crime é muito mais difícil de se comprovar nas queimadas. Apesar de provocar incêndio florestal ser crime no Brasil, com pena de 2 a 4 anos de prisão, é muito difícil provar quem iniciou o incêndio. No geral, as pessoas alegam que ele começou de forma natural. Além disso, o fogo rapidamente se alastra de uma propriedade para outra, dificultando a identificação da sua origem. E para complicar um pouco, a queima controlada é reconhecida como uma “técnica de manejo agrícola” no Brasil.
A estratégia de devastação da floresta pode até estar mudando, afinal ações criminosas precisam se adaptar para continuar atuando e fugir de ações de comando e controle, mas o que não muda é a sua motivação. A floresta continua a ser derrubada para saciar a demanda do mundo por proteína barata, em especial carne bovina e soja, que vira ração animal, principalmente para porcos e frangos. A substituição da floresta por pastos e plantações, bem como a emissão de metano, contribuem significativamente para a pegada da indústria global de alimentos. A produção de carne bovina e soja é responsável por 70% do desmatamento e da perda de habitat na Amazônia e no Cerrado do Brasil e dizima outros ecossistemas críticos para o clima. A responsabilidade por essa destruição e poluição está altamente concentrada em grandes empresas globais, como JBS, Marfrig, Cargill, Minerva e Bunge.
Enquanto seguimos queimando nossas florestas, a fumaça e a fuligem dos incêndios na Amazônia se utilizam dos rios voadores – massas de ar que carregam o vapor da Amazônia para outras regiões e regulam as chuvas e o clima no continente, para chegar ao sul do Brasil. Os resquícios das queimadas também se alastram por outros países da América do Sul, e nos próximos dias devem chegar com mais intensidade à Argentina e ao Uruguai, cuja capital Montevideo dista mais de 5 mil quilômetros de Manaus, no coração da Amazônia brasileira, que também está encoberta pela fumaça das queimadas.